Uma ferramenta muito interessante e usual nas negociações imobiliárias são as Arras, também conhecida como Sinal, que nada mais é do que a entrega, por parte de um dos contratantes, de coisa ou quantia que significa a firmeza da obrigação contraída ou garantia da obrigação pactuada. Assim, as arras podem ter tanto a função confirmatória, quanto a penitencial. Essa diferenciação é muito importante para compreender a natureza e a função das arras, e é nesse ponto que residem as dúvidas, inclusive de experientes operadores do direito.
A primeira dúvida que vem à mente é: Quando as arras serão confirmatórias e quando serão penitenciais?
As arras serão confirmatórias quando o contrato de promessa de compra e venda de imóvel não prever cláusula de arrependimento. Isso porque é muito comum a previsão nos contratos de que as partes não podem voltar atrás no negócio – considerado “irrevogável”, “irretratável”. Nesses casos, por não haver possibilidade de “desistir” da compra e venda, a parte que não executar (cumprir) o contrato perderá as arras que pagou. Se quem não cumprir o contrato é a pessoa que recebeu as arras, deverá restituir as arras, mais o equivalente.
É o que prevê o artigo 418 do Código Civil:
Art. 418. Se a parte que deu as arras não executar o contrato, poderá a outra tê-lo por desfeito, retendo-as; se a inexecução for de quem recebeu as arras, poderá quem as deu haver o contrato por desfeito, e exigir sua devolução mais o equivalente, com atualização monetária segundo índices oficiais regularmente estabelecidos, juros e honorários de advogado.
Vamos a um exemplo para entender a situação: Siegfried formaliza contrato de promessa de compra e venda de imóvel com Curt, sem cláusula de arrependimento, objetivando adquirir deste último um apartamento no valor de R$ 150.000,00 (cento e cinquenta mil reais). A fim de assegurar o negócio, Siegfried paga R$ 20.000,00 (vinte mil reais) a título de arras/sinal, ficando o saldo de R$ 130.000,00 (cento e trinta mil reais) a ser pago para Curt, na forma que melhor estipularam no contrato.
Se, nesse caso, Siegfried, não reunir condições financeiras de cumprir o restante do contrato (inadimplemento) ou, ainda, desistir posteriormente do negócio (arrependimento, sem previsão contratual para tanto), poderá Curt reter o valor das arras pago por Siegried. Por outro lado, se, por qualquer razão, Curt desistir de entregar o apartamento à Siegfried, deverá devolver o valor das arras (R$ 20 mil) mais o equivalente (+ R$ 20 mil).
A parte inocente, isto é, aquela que não tem culpa pela inexecução do contrato, pode pedir, além das arras (retidas, se tiver recebido; devolvidas em dobro, se tiver pago), indenização suplementar, caso tenha experimentado prejuízos maiores do que o valor das arras, de acordo com o que dispõe o artigo 419 do Código Civil:
Art. 419. A parte inocente pode pedir indenização suplementar, se provar maior prejuízo, valendo as arras como taxa mínima. Pode, também, a parte inocente exigir a execução do contrato, com as perdas e danos, valendo as arras como o mínimo da indenização.
Exemplo: Curt recebe de Siegfried arras de 20 mil reais, mas teve prejuízos (comprovados, exemplo: lucros cessantes) com o não cumprimento do contrato na ordem de 25 mil reais. Assim, além da retenção das arras de 20 mil reais, poderá pleitear indenização suplementar de 5 mil reais – podendo, inclusive, reter parte das parcelas pagas para cobrir o referido prejuízo. Vejamos o que entende o STJ a esse respeito:
DIREITO CIVIL. PROMESSA DE COMPRA E VENDA DE IMÓVEL. RESCISÃO. INADIMPLÊNCIA DO COMPRADOR. DEVOLUÇÃO DOS VALORES PAGOS. CABIMENTO. RETENÇÃO DE PARTE DOS VALORES PELO VENDEDOR. INDENIZAÇÃO PELOS PREJUÍZOS SUPORTADOS. CABIMENTO. ARRAS. SEPARAÇÃO. 1. A rescisão de um contrato exige que se promova o retorno das partes ao status quo ante, sendo certo que, no âmbito dos contratos de promessa de compra e venda de imóvel, em caso de rescisão motivada por inadimplência do comprador, a jurisprudência do STJ se consolidou no sentido de admitir a retenção, pelo vendedor, de parte das prestações pagas, como forma de indenizá-lo pelos prejuízos suportados, notadamente as despesas administrativas havidas com a divulgação, comercialização e corretagem, o pagamento de tributos e taxas incidentes sobre o imóvel e a eventual utilização do bem pelo comprador. 2. O percentual de retenção – fixado por esta Corte entre 10% e 25% – deve ser arbitrado conforme as circunstâncias de cada caso. 3. Nesse percentual não se incluem as arras, pagas por ocasião do fechamento do negócio e que, nos termos do art. 418 do CC⁄02 (art. 1.097 do CC⁄16), são integralmente perdidas por aquele que der causa à rescisão. 4. As arras possuem natureza indenizatória, servindo para compensar em parte os prejuízos suportados, de modo que também devem ser levadas em consideração ao se fixar o percentual de retenção sobre os valores pagos pelo comprador. 5. Recurso especial a que se nega provimento”
(STJ, REsp 1.224.921⁄PR, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 26⁄04⁄2011, DJe 11⁄05⁄2011).
Mas e as arras penitenciais? Pois bem. As arras serão penitenciais quando houver estipulação no contrato de cláusula de arrependimento. Nesses casos, quando há previsão expressa de que é possível a uma das partes se arrepender do negócio, as arras terão função indenizatória, isto é, servem como “sanção” para aquele que fazer uso da possibilidade de arrependimento.
Da mesma forma, se a parte que recebeu o sinal se arrepender posteriormente do negócio, deverá devolver à outra parte o valor, mais o equivalente. Se a parte que se arrependeu for a parte que deu o sinal, a outra poderá reter o valor.
Ressalte-se que, em se tratando de arras penitenciais, não é possível a indenização suplementar (mesmo que a parte inocente tenha sofrido maiores e comprovados prejuízos).
Mas e quando o contrato é regido pelo Código de Defesa do Consumidor? Nessas situações, quando o vendedor do imóvel é uma pessoa jurídica (incorporadora, construtora) habituada aos negócios imobiliários e o comprador é pessoa física (consumidor), aplicam-se as disposições do CDC, especialmente o artigo 53, assim redigido:
Art. 53. Nos contratos de compra e venda de móveis ou imóveis mediante pagamento em prestações, bem como nas alienações fiduciárias em garantia, consideram-se nulas de pleno direito as cláusulas que estabeleçam a perda total das prestações pagas em benefício do credor que, em razão do inadimplemento, pleitear a resolução do contrato e a retomada do produto alienado.
Assim, nesses negócios regulados pelo CDC, por ser o consumidor (pessoa física) hipossuficiente (parte mais fraca) em relação ao promitente vendedor (pessoa jurídica habituada a negócios imobiliários), a jurisprudência pátria entende que é indevida a retenção integral das arras confirmatórias, caso o consumidor não reúna condições de executar o contrato, sendo devida apenas a retenção de percentual sobre o valor das parcelas que foram pagas (incluindo nelas as arras). Vejamos:
“Da exegese dos artigos 418 do CC c/c 53 do CDC, tem-se, efetivamente, que o percentual a ser devolvido deve ser calculado sobre a totalidade dos valores vertidos pela promitente-compradora, compreendidos neste montante tanto as arras como as parcelas propriamente ditas”
(STJ, 3ª Turma, excerto do voto do Rel. Min. Massami Uyeda, AgRg no REsp n. 1.222.139/MA, j. 1-3-2011).
E se o contrato prever, além das arras, o pagamento de cláusula penal para a parte que der causa à rescisão do contrato?
Quando houver previsão de cláusula penal (multa contratual) para a parte que não cumprir o contrato, a jurisprudência entende que não pode haver dupla punição (bis in idem), já que as arras e a cláusula penal serviriam para o mesmo fim: indenização mínima dos prejuízos à parte inocente. Nessas situações, prevalece a perda das arras, sendo afastada a cláusula penal (abusiva, portanto). Vejamos:
DIREITO CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE RESOLUÇÃO DE PROMESSA DE COMPRA E VENDA DE IMÓVEL C/C PEDIDO DE REVISÃO DE CLÁUSULAS CONTRATUAIS. NEGATIVA DE PRESTAÇÃO JURISDICIONAL. NÃO OCORRÊNCIA. CLÁUSULA PENAL COMPENSATÓRIA. ARRAS. NATUREZA INDENIZATÓRIA. CUMULAÇÃO. INADMISSIBILIDADE. PREVALÊNCIA DAS ARRAS. JUROS DE MORA. TERMO INICIAL. TRÂNSITO EM JULGADO. […] 6. De acordo com o art. 418 do CC/02, mesmo que as arras tenham sido entregues com vistas a reforçar o vínculo contratual, tornando-o irretratável, elas atuarão como indenização prefixada em favor da parte “inocente” pelo inadimplemento, a qual poderá reter a quantia ou bem, se os tiver recebido, ou, se for quem os deu, poderá exigir a respectiva devolução, mais o equivalente. 7. Evidenciada a natureza indenizatória das arras na hipótese de inexecução do contrato, revela-se inadmissível a sua cumulação com a cláusula penal compensatória, sob pena de violação do princípio do non bis in idem (proibição da dupla condenação a mesmo título). 8. Se previstas cumulativamente, deve prevalecer a pena de perda das arras, as quais, por força do disposto no art. 419 do CC, valem como “taxa mínima” de indenização pela inexecução do contrato. […]
(STJ, REsp: 1617652 DF 2016/0202087-2, Relator: Ministra NANCY ANDRIGHI, Data de Julgamento: 26/09/2017, T3 – TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 29/09/2017).
Conclui-se, portanto, que as arras podem ser utilizadas como elemento útil à confirmação do negócio (arras confirmatórias) ou, ainda, como indenização prefixada para casos de desistência (arras penitenciais), quando houver a possibilidade contratual (cláusula) de arrependimento.
Por fim, atenta-se para a importância de um instrumento contratual claro e bem redigido, que preserve os direitos de ambos os contratantes e evite a judicialização da matéria, satisfazendo da melhor forma os interesses dos envolvidos – e evitando custos e “dor de cabeça”.
Até a próxima!