Improbidade Administrativa é expressão sinônima de desonestidade na gestão do patrimônio público. Comete improbidade administrativa o agente público que, de forma desonesta e desleal, pratica atos que visam beneficiar a si ou a terceiros às custas do Erário Público. A ação por ato de improbidade administrativa busca punir civil e politicamente o agente público que assim age, com penas de ressarcimento dos danos, suspensão dos direitos políticos, perda de função pública, proibição de contratar com o Poder Público ou dele receber benefícios e multa civil.
Embora seja uma ação de natureza civil, a ação por ato de improbidade administrativa segue um rito um pouco diferenciado das ações cíveis comuns. Nas ações cíveis comuns uma parte ingressa com uma ação contra a parte contrária que, após ser citada, deverá apresentar sua defesa para, após a produção de provas, a ação ser julgada pelo juiz. Já na ação por ato de improbidade administrativa a Lei 8.429/92 estabelece um passo a mais, que ocorre logo no seu início, que é a fase da manifestação preliminar do requerido. O art. 17, §7º da mencionada lei estabelece que “estando a inicial em devida forma, o juiz mandará autuá-la e ordenará a notificação do requerido, para oferecer manifestação por escrito, que poderá ser instruída com documentos e justificações, dentro do prazo de quinze dias”. Após a manifestação preliminar do requerido, o processo volta para o juiz para decidir se aceita ou não a ação, isto nos termos do §8º do art. 17 da Lei, que dispõe: “Recebida a manifestação, o juiz, no prazo de trinta dias, em decisão fundamentada, rejeitará a ação, se convencido da inexistência do ato de improbidade, da improcedência da ação ou da inadequação da via eleita.” Assim, se o juiz decidir por não aceitar a ação, esta se encerra. Se decidir por aceitar a ação, somente a partir daí o requerido será citado para apresentar sua defesa (contestação). Este passo a mais serve para que o juiz tenha a oportunidade de, logo de início, pôr fim a uma ação temerária, que irá fatalmente ser julgada improcedente. O objetivo é evitar que pessoas sejam processadas injustamente, muitas vezes sofrendo por anos com a pecha injusta de desonestas e corruptas. Ocorre que, pela redação do §8º do art. 17 da Lei de Improbidade Administrativa, parece que o juiz somente deverá fundamentar sua decisão somente no caso de negar o recebimento da ação, não tendo a obrigação de fundamentar caso venha a recebê-la. E o que se vê é que várias ações por ato de improbidade administrativa são recebidas sem qualquer cuidado, sem qualquer análise mais detalhada. O que se percebe é que muitos juízes, ao receberem as ações de improbidade administrativa, usam como único argumento a existência de meros indícios (sem indicá-los expressamente) e o “respeito ao princípio do in dubio pro societate”. E o que significa o princípio do in dubio pro societate? Significa que, havendo dúvidas sobre se o requerido cometeu ou não ato de improbidade, a ação deve ser recebida, porque “o interesse da sociedade é superior ao interesse individual do acusado”. Ao final, quando for julgar a ação, uma eventual condenação somente pode ser determinada se houver certeza sobre a culpabilidade do acusado, porque nesta fase final deve prevalecer o princípio do in dubio pro reo. Como já exposto acima, ações por ato de improbidade administrativa impõem penas que são severas, que muitas vezes ferem de morte a moral de uma pessoa e que causam danos irreparáveis à sua imagem e ao seu patrimônio (quando seus bens são tornados indisponíveis já no meio do processo). E, por isso mesmo, devem ser manuseadas com muita cautela, buscando evitar ações temerárias que irão causar injusto mal aos envolvidos. Infelizmente é comum que ações civis públicas por ato de improbidade administrativa sejam recebidas sem parcimônia. Sob o argumento de in dubio pro societate, admite-se o processamento de ações temerárias, que nada mais farão senão punir indiretamente o requerido, que sofrerá com a pecha de desonesto até prova em contrário. Sem haver demonstração de ato de improbidade, permite-se que o Ministério Público venha a tentar provar durante a instrução processual que o requerido foi ímprobo. E isto é uma inversão de valores inconcebível. O Ministério Público tem plenas condições de apurar os fatos antes de ingressar com a ação em juízo. Deixar para investigar as irregularidades somente durante a tramitação da ação revela-se uma medida cruel e injusta. Muitas ações desta natureza (eu diria a maioria) são ao final julgadas improcedentes, mas não sem antes bloquear os bens dos acusados, divulgar na mídia que a pessoa está sendo acusada de cometer improbidade (e perante a opinião pública, ao contrário da justiça, até prova em contrário um acusado é culpado) e causar toda a sorte de achincalhamento do seu nome. O TJSC [1] já se manifestou neste sentido, sobre a cautela ao se aplicar o princípio do in dubio pro societate quando da decisão de receber ou não uma ação por ato de improbidade administrativa: “É provável que essa dedução de interesse comum, invocada sempre em tom de vaticínio mas a rigor articulada apenas retoricamente na fase inicial, revele consigo um apelo que se contrapõe ao eventual uso indiscriminado da ação; afinal, é também lugar-comum a dedução do viés político no manejo da ação de improbidade, tendo em conta seu espectro e sobretudo seus efeitos. Daí a razão pela qual alguma cautela, muito apurada, é providencial nessa fase, quer para inibir a malversação do instrumento e assim evitar sua banalização, quer, de outro vértice, para evitar juízo precipitado e mesmo particular sobre fatos que casualmente não estão maturados.”
“Processos baseados em leves indícios não devem ser admitidos pelo Judiciário. O in dubio pro societate, na fase de recebimento da denúncia ou de uma ação civil pública de improbidade, há de ser repensado à luz do princípio da justa causa da ação punitiva, e tendo em conta os poderes investigatórios cada vez mais amplos das autoridades públicas. É hora de se redefinir as exigências para o recebimento de uma peça acusatória nesse cenário, pois nada impede que as autoridades prossigam em suas investigações exaustivamente, até que esgotem o conhecimento da matéria, antes de submeter alguém ao constrangimento do processo judicial.
Um sinal dos novos tempos é a quantidade de medidas cautelares que muitas vezes são requeridas em processos punitivos, tais como prisões preventivas, bloqueios patrimoniais ou quebras de sigilos. Essa tendência de exacerbação das cautelares realça que os processos exigem robustez de elementos de convencimento também para sua instauração. O recebimento de uma denúncia ou de uma ação de improbidade gera múltiplos efeitos na vida das pessoas físicas ou jurídicas, disso resultando a importância da atividade preliminar de investigação”.
ULISSES CÉSAR MARTINS DE SOUZA[3] critica a inversão da presunção de inocência com base no princípio do in dubio pro societate:BRUNO GREGO SANTOS[4] discorre sobre a cautela no recebimento de ações de improbidade administrativa:“Multiplicam-se, em todos os estados da federação, o ajuizamento de ações penais — e de improbidade administrativa — propostas sob o argumento de graves lesões ao erário. Algumas dessas ações têm fundamento. Outras são totalmente infundadas, carentes de justa causa. Várias dessas ações são propostas através de iniciais acusatórias que beiram a inépcia e, o que é pior, o recebimento da ação penal — e da ação de improbidade — é realizado através de decisões genéricas, carentes de qualquer fundamentação concreta, baseadas unicamente na “gravidade das acusações” e na repercussão que esses casos costumam ter na imprensa. No recebimento da peça inicial é realizada uma verdadeira inversão da presunção de inocência com a utilização do princípio in dubio pro societate. (…)
A confusão existente no imaginário popular, que tende a acreditar que todo ato ilegal configura um crime ou, se cometido por um agente público, no mínimo tipifica a prática de ato de improbidade, não pode — e nem deve — prevalecer no Poder Judiciário. É preciso acabar com essa tendência — inexplicavelmente generalizada — de se considerar, como ímprobas e/ou criminosas todas as condutas ilegais atribuídas a agentes públicos.
Essa tendência dos órgãos de acusação — e de investigação — de atribuir responsabilidade objetiva ao cidadão, atribuindo-lhe o ônus de provar a sua inocência em juízo não pode ser tolerada. A culpabilidade é um princípio de direito sancionador – extensível ao direito penal e administrativo — que veda a atribuição de responsabilidade objetiva. A culpabilidade do acusado precisa ser demonstrada na inicial acusatória. Essa tarefa é ônus de quem acusa. O ônus da prova da culpa — ou do dolo — é de quem afirma a sua existência. (…)
É intolerável que — com a simples invocação do princípio do in dubio pro societate e com a alegação de que eventuais dúvidas poderão ser sanadas no curso do processo — submeta-se o cidadão ao martírio de ser réu em uma ação penal — ou de improbidade administrativa — fato que, por si só, já representa uma verdadeira sanção, ainda mais em um país em que tais processos demoram décadas para serem julgados.
Em um Estado de Direito — que se diz Democrático — não deve haver espaço para a máxima in dubio pro societate. O recebimento de uma ação penal — ou de improbidade administrativa — deve ser sempre condicionado à concreta demonstração de todos os elementos necessários à tipificação do ilícito imputado ao réu e, é claro, à existência de justa causa, ou seja, de um suporte probatório mínimo que sirva para lastrear a acusação e que necessita ser concretamente demonstrado
“Estabeleceu-se na sociedade uma presunção de culpa do servidor público, o que alimenta o emergente preconceito contra a atuação pública, pelo qual entende-se que o padrão no serviço público é a desonestidade. (…)
A Ação Civil Pública é o meio para o sancionamento político-civil direcionado a agentes públicos e, tendo em vista a gravidade de suas disposições e medidas, o seu recebimento deve ser concretizado com cautela. (…)
Ocorre que configura-se recorrente em nosso Direito o posicionamento pelo qual entende-se que o processamento do agente público – e, mais particularmente, o servidor público – é um mal necessário à persecução da regularidade no trato com a coisa pública.
Este entendimento fomenta a proposição algumas vezes indiscriminada e até injusta de medidas persecutórias pelos órgãos de controle em face de servidores públicos, muitas vezes acolhidos para apreciação pelos órgãos judiciais como homenagem a um postulado de in dubio pro societate.
Estabelece-se, assim, a presunção de culpa do servidor público, o que alimenta o emergente preconceito contra a atuação pública, pelo qual entende-se que o padrão no serviço público é a desonestidade. Ora, adotar o entendimento de acolhimento automático de Ações Civis Públicas – em evidente afronta à Lei, como exposto no art. 17, § 8º, da Lei 8.429/1992 – é ferir de morte o Princípio Administrativo da Presunção de Legalidade dos Atos Administrativos. (…)
Ora, à evidência que a falta de demonstração de ilegalidade leva à presunção de regularidade dos atos, com supedâneo nos mais preciosos princípios constitucionais. Ainda, a petição inicial que deixa de provar ou demonstrar a sólida possibilidade de irregularidade descumpre os requisitos do § 6º do art. 17 da Lei nº 8.429/1992, motivo pelo qual deve ser reputada inepta pelo Juízo. (…)
Ocorre que, com freqüência, os órgão judiciais brasileiros vêm desobedecendo este mandamento legal, decidindo por receber a Ação Civil Pública visando a formação de indícios de culpa no decorrer do processo. Ora, apesar da Ação Civil Pública não ser de cognição sumária, não exigindo assim prova pré-constituída, exige-se a demonstração da irregularidade a ser provada, motivo pelo qual tal posicionamento revela-se teratológico. (…)
Mas mesmo no Direito Penal, lidando com bens jurídicos ameaçados por afrontas em muito superiores àquelas sancionadas pela Lei nº 8.428/1992, o in dubio pro societate é abominado pela doutrina, visto que põe por terra as garantias constitucionais conferidas a todos os cidadãos. Da lição de Paulo Rangel:
“O chamado princípio do in dubio pro societate não é compatível com o Estado Democrático de Direito, onde a dúvida não pode autorizar uma acusação, colocando uma pessoa no banco dos réus […]. O Ministério Público, como defensor da ordem jurídica e dos direitos individuais e sociais indisponíveis, não pode, com base na dúvida, manchar a dignidade da pessoa humana e ameaçar a liberdade de locomoção com uma acusação penal. […]
Não há nenhum dispositivo legal que autorize esse chamado princípio do in dubio pro societate. […] Jogá-lo no banco dos réus com a alegação de que na instrução o MP provará os fatos que alegou é achincalhar com os direitos e garantias individuais, desestabilizando a ordem jurídica com sérios comprometimentos ao Estado Democrático de Direito.” (…)
Pode-se concluir, portanto, que apesar de a Lei nº 8.429/1992 não instituir a necessidade de pré-constituição da prova junto da inicial da Ação Civil Pública, o § 6º art. 17 daquela Lei exige a demonstração da irregularidade, ainda que não seja possível a produção da sua prova. (…)
Ora, é de sabença jurídica comum que a lei não traz disposições inúteis; pois bem, diante da disposição da Lei de Improbidade Administrativa de que o recebimento da Ação Civil Pública deverá obedecer ao Princípio da Presunção de Legalidade dos Atos Administrativos, visando assim “sustar ações temerárias, desarrazoadas ou infundadas” não há justificativa plausível para que tais disposições sejam desobedecidas com vistas à celebração de um inexistente princípio do in dubio pro societate. (…)
A presunção de ilegalidade dos atos administrativos instituída pelo postulado do in dubio pro societate atinge ainda as próprias garantias individuais dos servidores públicos, já que, além da afronta à presunção de inocência constitucionalmente homenageada, constitui-se ameaça ao caráter subjetivo da responsabilidade de servidores instituído pelos parágrafos do art. 37 da Constituição Federal.
Como não há ato de improbidade administrativa sem o liame subjetivo consubstanciado na má-fé do agente, ausente a prova do dolo ou culpa grave, concretiza-se a primeira das três hipóteses de rejeição da Ação Civil Pública instituídas pelo § 8º do art. 17 da Lei 8.429/1992: “o juiz […] rejeitará a ação, se convencido da inexistência do ato de improbidade […]”.
É este o entendimento pacífico do Superior Tribunal de Justiça, que o Ministro Luiz Fux leva consiga ao Supremo Tribunal Federal, como afirma em entrevista concedida por ocasião de sua nomeação ao Pretório Excelso:“A improbidade administrativa foi criada para o administrador desonesto, razão pela qual não pode ser aplicada indiscriminadamente. O tipo pode até objetivamente estar configurado, mas é preciso verificar subjetivamente se houve intenção de lesar ou lesão ao erário. Não é possível fazer uma interpretação literal da lei, que não conduza a um resultado justo. Já decidi alguns casos de ações por improbidade absurdas. Por exemplo, uma ação contra um município que cedeu sua reserva de medicamentos remédios para atender crianças de outro município, tomado por um surto de virose.”
Assim, se para negar o prosseguimento da ação o juiz deve fundamentar sua decisão, com igual razão deve fazê-lo quando admitir o seu prosseguimento. Não basta a invocação do princípio do in dubio pro societate e nem tampouco se afirmar que a investigação deverá ser feita durante a instrução processual. É necessário que os advogados, na defesa de seus clientes, insurjam-se contra as decisões imotivadas (ou motivadas apenas na aparência) dos juízes de receber as ações por ato de improbidade administrativa apenas com base nos “indícios” e em homenagem ao princípio do in dubio pro societate. A partir do momento em que os Tribunais tenham que analisar constantemente recursos contra o recebimento indiscriminado de tais ações, talvez os juízes de 1º grau passem a analisar com mais cautela e sobriedade quanto ao seu recebimento ou não.
[1] TJSC – Quarta Câmara de Direito Público – Apelação Cível nº 0003218-33.2011.8.24.0058 – Rel. Des. Ricardo Roesler – julgado por unanimidade em 04/08/2016
[2] OSÓRIO, Fábio Medina. Conceito de in dubio pro societate deve ser repensado à luz da justa causa. Publicado em 27/01/2017. http://www.conjur.com.br/2017-jan-27/medina-osorio-in-dubio-pro-societate-repensado.
[3] SOUZA, Ulisses César Martins de Sousa. Inversão da presunção de inocência com base no in dubio pro societate – publicado em 13/09/2016. http://www.conjur.com.br/2016-set-13/inversao-presuncao-inocencia-base-in-dubio-pro-societate.
[4] SANTOS, Bruno Grego. A adoção do postulado “in dubio pro societate” em ações civis públicas frente ao princípio da presunção de legitimidade dos atos administrativos. Publicado em 08/2011. https://jus.com.br/artigos/19773/a-adocao-do-postulado-in-dubio-pro-societate-em-acoes-civis-publicas-frente-ao-principio-da-presuncao-de-legitimidade-dos-atos-administrativos[/vc_column_text][/vc_column][/vc_row]
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