Toda aquisição de bens ou serviços por parte do Poder Público exige, via de regra, licitação. Como toda regra, existem as exceções, através das excludentes de licitação (dispensa e inexigibilidade). E toda aquisição de bens ou serviços exige, também via de regra, uma série de formalidades: prévia licitação (ou processo de excludente de licitação), contrato administrativo firmado entre as partes, prévio empenho, e outras formalidades intermediárias. E não se admite, também via de regra, contratos verbais com a Administração Pública, nos termos do parágrafo único do art. 60 da Lei 8.666/93:
Art. 60. Os contratos e seus aditamentos serão lavrados pelas repartições interessadas, as quais manterão arquivo cronológico dos seus autógrafos e registro sistemático do seu extrato, salvo os relativos a direitos reais sobre imóveis, que se formalizam por instrumento lavrado em cartório de notas, de tudo juntando-se cópia no processo que lhe deu origem.
Parágrafo único. É nulo e de nenhum efeito o contrato verbal com a Administração, salvo o de pequenas compras de pronto pagamento, assim entendidas aquelas de valor não superior a 5% (cinco por cento) do limite estabelecido no Art. 23, inciso II, alínea “a” desta Lei, feitas em regime de adiantamento.
Poder-se-ia afirmar, portanto, que fora as exceções previstas no próprio parágrafo único do art. 60, toda vez que a Administração Pública adquirir algum bem ou serviço sem contrato escrito, aí se incluindo locações, esta relação negocial não teria nenhum efeito, sendo nulo de pleno direito. Exemplificando tal premissa, se um particular locasse para a Administração Pública um imóvel seu sem contrato não teria direito a receber os alugueis correspondentes, já que “é nulo e de nenhum efeito o contrato verbal com a Administração”.
Contudo, surgem situações onde a Administração Pública comete erros, deixando de formalizar atos negociais, incidindo na vedação prevista no parágrafo único do art. 60. Eis que o parágrafo único do art. 59 do mesmo diploma legal estabelece que o Ente Público não pode se locupletar indevidamente às custas do contratado:
Art. 59. A declaração de nulidade do contrato administrativo opera retroativamente impedindo os efeitos jurídicos que ele, ordinariamente, deveria produzir, além de desconstituir os já produzidos.
Parágrafo único. A nulidade não exonera a Administração do dever de indenizar o contratado pelo que este houver executado até a data em que ela for declarada e por outros prejuízos regularmente comprovados, contanto que não lhe seja imputável, promovendo-se a responsabilidade de quem lhe deu causa.
Infelizmente surgem situações onde a Administração Pública e um particular não renovam contratos, mas onde o ente público continua a receber do particular os bens ou serviços anteriormente contratados. Exemplo clássico é a inexistência de renovação de contrato de locação sem que haja a devolução do imóvel pelo Poder Público. Pode parecer esdrúxulo o exemplo, mas ele é mais comum do que se imagina. À princípio poder-se-ia afirmar que a ausência de contrato formalizado impediria o pagamento dos alugueis. E, por incrível que pareça, este é justamente o primeiro (senão o único) argumento de defesa do ente público quando acionado judicialmente.
Não se permite o enriquecimento sem causa, é o que dispõe o art. 884 do Código Civil:
Art. 884. Aquele que, sem justa causa, se enriquecer à custa de outrem, será obrigado a restituir o indevidamente auferido, feita a atualização dos valores monetários.
Na esfera da Administração Pública, Marçal Justen Filho[1] ensina:
“O mesmo resultado atinge-se por outra via, relacionada com a vedação ao enriquecimento sem causa (Còdigo Civil, arts. 884 a 886). Se não fosse prestado ao particular o montante correspondente ao que lhe fora originalmente assegurado, ter-se-ia de reconhecer um enriquecimento correspondente e sem causa em prol do Estado.
Ao se vedar o confisco de bens por parte do Estado, torna-se juridicamente descabida a possibilidade de apropriação de bens e direitos privados sem uma contrapartida.
A eventual invalidade do ato jurídico que conduziu o particular a realizar prestação em benefício do Estado não legitima o enriquecimento sem causa. Caberá a restituição do equivalente ao que o particular executou em prol do Estado. Se tal se verificar como impossível, a solução será a indenização pelo correspondente.
Bem por isso, a solução já fora consagrada no âmbito do Direito francês, no qual se admite que a teoria do enriquecimento sem causa “permite assegurar indenizações, que a equidade recomenda, nos casos especialmente em que as obras foram executadas ou as prestações fornecidas com base em um contrato que, finalmente, não foi concluído, que foi entranhado de nulidade, que atingiu a seu termo ou em que nenhum instrumento foi preparado ou ainda à margem de um contrato.”
Há que estar presente a boa-fé do contratado. Não se justifica seja ressarcido o fornecedor que, sabendo da existência das formalidades legais, mantém-se silente para fornecer bens ou serviços que sabe não poder fornecê-los em situações regulares.
Quando o fornecimento de bens ou serviços (aí se incluindo as locações onde a Administração figure como locatário) ocorrer de boa fé, pode o fornecedor buscar o ressarcimento, tanto na esfera administrativa como na judicial. No primeiro caso, o ente público pode instaurar Termo de Ajuste de Contas, que visa comprovar que o bem ou serviço foi fornecido.
Em brilhante artigo FRANKLIN RAMOS DA SILVA[2] discorre acerca da obrigatoriedade de pagamento pelo ente público ao fornecedor de bem/serviço mesmo em situação de contratação sem licitação (e por consequência sem contrato):
“Afora as possibilidades de dispensa e inexigibilidade de licitação e os ajustes decorrentes da Teoria da Imprevisão, em alguns casos o administrador não promove o procedimento licitatório preferindo contratar ilegalmente empresas que compactuam com tal tipo de ilegalidade. Este risco muitas vezes é absorvido pela administração que, para não se locupletar à custa de particular, se o fornecimento foi realizado, pode proceder ao pagamento por indenização, mesmo a contratação sendo nula. Existe corrente doutrinária que defende tal possibilidade, caso a nulidade tenha sido reconhecida e a rescisão sido perpetrada por ato unilateral da administração. Outra corrente defende a nulidade total, transferindo o risco ao particular, não efetuando qualquer pagamento. Uma terceira corrente atesta que todo pagamento é devido, já que cabe à administração se cercar de todas as cautelas legais no sentido de não permitir a contratação sem licitação.
Particularmente simpática à primeira corrente, maioria doutrinária acolhe a possibilidade de pagamento por indenização desde que esteja em conformidade com essas características e estritamente dentro do procedimento legal. (…)
3.1. O ARTIGO 59 DA LEI 8.666/93 E A OBRIGAÇÃO DE INDENIZAR
Mesmo a contratação sendo nula, não existindo responsabilização do contratado, o pagamento dos serviços deve ser efetuado, a título de indenização, de conformidade com a regra constante do art. 59 da Lei 8.666/93, para que não ocorra enriquecimento sem causa, por parte da Administração, prática vedada pelo artigo 59 da Lei 8.666/93…” (…)
3.2. O ARTIGO 884 DO CÓDIGO CIVIL E O LOCUPLETAMENTO ILÍCITO
A responsabilização de quem deu causa aos prejuízos comprovadamente efetivados é item de primordial importância que, pelos princípios da moralidade e da legalidade, deve ser priorizada pela administração pública.
Destarte, o artigo 884 do Código Civil traz a possibilidade de restituição ao particular de valores auferidos com a falta de pagamento a este, por locupletamento ilícito, na possibilidade do particular não ter dado causa à nulidade contratual. (…)
Assim, considerando-se que houve enriquecimento ilícito por parte da administração, advém o dever de indenizar o particular pelos valores indevidamente auferidos, desde que legalmente comprovados. (…)
3.3. DOS AJUSTES DE CONTAS LEGAIS
Uma vez legalmente comprovado que a administração pública deve indenizar o particular, pugna-se para que seja viabilizado este pagamento pelo procedimento de ajustes de contas legais, lavrando-se o Termo de Ajuste de Contas e a publicação destes em Órgão Oficial.
Em suma, para viabilizar o pagamento deverá ser lavrado Termo de Ajuste de Contas (art. 63, § 2º, da Lei nº 4.320/64), no qual constará a descrição dos serviços e a quitação, sem ressalvas, pelo prestador destes.”
Contudo, na maioria das vezes a Administração Pública se nega a promover tal indenização administrativamente, fazendo com que o fornecedor busque judicialmente o ressarcimento. Esta situação geralmente ocorre quando a despesa tenha sido realizada em gestões anteriores (e aí se confunde o interesse da Administração Pública com o do Administrador Público), alegando-se ausência de previsão orçamentária e outros “impedimentos” legais e regulamentares. Trata-se de claro desrespeito aos direitos do cidadão, já que, com tal negativa, geralmente o particular se submete ao duplo grau de jurisdição obrigatório, expedição de precatórios e outras “prerrogativas” à disposição do ente público, que muitas vezes servem apenas para postergar indenizações justas e legitimar o calote público.
Na esfera judicial é pacífica a posição dos Tribunais pátrios acerca da obrigatoriedade de pagamento pelo ente público ao fornecedor que não se vê protegido por um contrato formal. Neste sentido:
ADMINISTRATIVO . AÇÃO DE COBRANÇA. PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS DE PUBLICIDADE. NULIDADE DO CONTRATO ADMINISTRATIVO POR AUSÊNCIA DE LICITAÇÃO. ART. 59, PARÁGRAFO ÚNICO DA LEI 8.666/93. 1. Segundo a jurisprudência desta Corte, embora o contrato administrativo cuja nulidade tenha sido declarada não produz efeitos, a teor do art. 59 da Lei 8.666/93, não está desonerada a Administração de indenizar o contratado pelos serviços prestados ou pelos prejuízos decorrentes da administração, desde que comprovados, ressalvada a hipótese de má-fé ou de ter o contratado concorrido para a nulidade. 2. Procedência da ação de cobrança que se mantém. 3. Recurso especial improvido.[3]
“No regime jurídico dos contratos administrativos nulos, a declaração de nulidade opera eficácia ex tunc, ou seja, retroativamente, não exonerando, porém, a Administração do dever de indenizar o contratado (Lei 8.666/93, art. 59, parágrafo único), o que, todavia, deve ser buscado na via judicial adequada. 7. Recurso especial provido.[4]
“PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO (…) AÇÃO DE COBRANÇA. CONTRATO VERBAL. SERVIÇOS EFETIVAMENTE PRESTADOS À SOCIEDADE DE ECONOMIA MISTA. A INEXISTÊNCIA DE CONTRATAÇÃO FORMAL NÃO EXIME A ADMINISTRAÇÃO DE EFETUAR O PAGAMENTO DOS SERVIÇOS PRESTADOS. VEDAÇÃO AO ENRIQUECIMENTO ILÍCITO. JURISPRUDÊNCIA CONSOLIDADA DESTA CORTE. ACÓRDÃO RECORRIDO EM CONSONÂNCIA COM PRECEDENTES DO STJ. AGRAVO REGIMENTAL DA TELEMAR DESPROVIDO. (…) 3. O art. 59, parágrafo único, da Lei 8.666/93, prestigiando os princípios da boa-fé objetiva e da vedação do enriquecimento sem causa, expressamente, consigna que a nulidade do contrato administrativo não exonera a Administração do dever de indenizar o contratado pelo que este houver executado até a data em que ela for declarada e por outros prejuízos regularmente comprovados, contanto que não lhe seja imputável, promovendo-se a responsabilidade de quem lhe deu causa.[5]
Assim, inobstante os vários obstáculos colocados no caminho do fornecedor, à título de prerrogativas da Administração Pública, o pagamento por serviços e bens fornecidos é possível. A Justiça demora, mas não falha.
[1] JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à lei de licitações e contratos administrativos. 14ª edição. São Paulo. Dialética. 2010, pág. 745.
[2] SILVA, Franklin Ramos da. Do pagamento por indenização na contratação sem licitação. https://jus.com.br/artigos/17375/do-pagamento-por-indenizacao-na-contratacao-sem-licitacao/
[3] STJ – REsp: 928315 MA 2007/0045127-2, Relator: Ministra ELIANA CALMON, Data de Julgamento: 12/06/2007, T2 – SEGUNDA TURMA, Data de Publicação: DJ 29.06.2007 p. 573
[4] STJ – REsp: 545471 PR 2003/0078413-5, Relator: Ministra DENISE ARRUDA, Data de Julgamento: 23/08/2005, T1 – PRIMEIRA TURMA, Data de Publicação: –> DJ 19/09/2005 p. 187RSTJ vol. 196 p. 83
[5] STJ – AgRg no AREsp: 450983 PE 2013/0410556-0, Relator: Ministro NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, Data de Julgamento: 04/11/2014, T1 – PRIMEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 18/11/2014