“Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.” É o que dispõe o art. 927 do Código Civil. Esta responsabilidade transmite-se por sucessão: “nenhuma pena passará da pessoa do condenado, podendo a obrigação de reparar o dano e a decretação do perdimento de bens ser, nos termos da lei, estendidas aos sucessores e contra eles executadas, até o limite do valor do patrimônio transferido” (art. 5º, XLV da CF); “O direito de exigir reparação e a obrigação de prestá-la transmitem-se com a herança.” (art. 943 do Código Civil).
Diante de tais premissas, todo aquele que, falecendo, deixar dívidas decorrentes de atos ilícitos, transmitirá aos seus herdeiros o ônus até o limite do valor da herança.
Esta regra foi repetida no âmbito do Direito Administrativo e, mais especificamente, no âmbito da Lei de Improbidade Administrativa (Lei 8.429/92). Isto porque o seu art. 8º dispõe que “o sucessor daquele que causar lesão ao patrimônio público ou se enriquecer ilicitamente está sujeito às cominações desta lei até o limite do valor da herança.” Portanto, aquele que for condenado nos termos da LIA por causar lesão ao patrimônio público ou por se enriquecer ilicitamente transmitirá aos seus herdeiros, por ocasião da sua morte, as condenações previstas na lei.
Uma primeira leitura do art. 8º da LIA faz parecer que qualquer das cominações previstas no art. 12 da LIA são transmissíveis aos herdeiros do agente ímprobo. Mas há que se ter cautela em tal interpretação.
Em primeiro lugar, já existem duas limitações expressas na redação do art. 8º. A primeira diz respeito à natureza dos atos de improbidade, limitando a transmissibilidade somente se os atos de improbidade decorram de danos causados ao Erário Público ou de enriquecimento ilícito. Isto limita o espectro da transmissibilidade aos atos de improbidade previstos nos arts. 9º e 10o da LIA. As penas aplicadas por prática de ato de improbidade que atentem contra os princípios da administração pública (art. 11) não se transferem aos herdeiros do agente ímprobo.
A doutrina e a jurisprudência já pacificaram o entendimento de que a LIA foi editada com base numa graduação de gravidade dos tipos de ato de improbidade administrativa previstos nos arts. 9º ao 11. O art. 9º trata dos atos que importam enriquecimento ilícito, sendo o mais grave dos tipos legais previstos, razão pela qual recebem as penas mais severas, previstas no inciso I do art. 12. Se o ato tido como ímprobo não importar em enriquecimento ilícito mas causar dano ao erário público, será tipificado nos termos do art. 10 da LIA, recebendo as penas tidas como medianas (inciso II do art. 12). Por fim, se não houver enriquecimento ilícito e nem dano ao erário público, mas houver infração aos princípios da administração pública, estar-se-á diante de ato de improbidade do art. 11, considerado como o mais leve dos tipos, razão pela qual recebe as penas mais brandas (inciso III do art. 12). Há ainda uma quarta modalidade de ato de improbidade, qual seja os atos de improbidade administrativa decorrentes de concessão ou aplicação indevida de benefício financeiro ou tributário (art. 10-A), incluído pela Lei Complementar nº 157, de 2016), que estaria na escala de gravidade como atos de improbidade medianos, com penas igualmente medianas, estabelecidas no inciso IV do art. 12.
Vê-se assim que os atos de improbidade administrativa previstos no art. 11 da LIA são de natureza residual e por isso suas penas não são transmissíveis aos herdeiros do agente ímprobo nos termos do art. 8º. Neste sentido o STJ já decidiu: “Nas ações de improbidade administrativa fundadas nos arts. 9º e/ou 10 da Lei n. 8.429/1992, os sucessores do réu, falecido no curso do processo, estão legitimados a prosseguir no polo passivo da demanda, nos limites da herança, para fins de ressarcimento ao erário.” (AgInt no AREsp 890797 RN 2016/0078578-1).
A segunda limitação expressamente prevista no art. 8º diz respeito ao limite da herança. Não pode um herdeiro de um agente ímprobo ser responsabilizado por determinada condenação se o que herdou é menos do que a dita condenação.
Contudo, eis que surgem outras limitações, não expressamente previstas no texto do art. 8º da LIA, que demandam interpretação. Partindo-se do pressuposto que somente as condenações por atos de improbidade administrativa previstos nos arts. 9º e 10 são transmissíveis, seria então de se considerar que qualquer das penas previstas nos incisos I e II do art. 12 (perda dos bens ou valores acrescidos ilicitamente ao patrimônio, ressarcimento integral do dano, perda da função pública, suspensão dos direitos políticos, multa civil e proibição de contratar com o Poder Público ou receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios), seriam transmissíveis aos herdeiros do agente ímprobo. Mas tal entendimento não é correto. Uma vez que as penas são personalíssimas, não pode um herdeiro perder a função pública que conquistou mediante aprovação em concurso público, por exemplo. Da mesma forma, não poderá ter seus direitos políticos suspensos ou ficar proibido de contratar com o Poder Público. A transmissibilidade limita-se ao ressarcimento ao erário público. “Penas de suspensão dos direitos políticos, proibição de contratar com o poder público e multa civil que têm caráter personalíssimo, não se transmitindo aos herdeiros” (TJ-SP – APL: 00118736220058260053 SP 0011873-62.2005.8.26.0053, Relator: Moacir Peres, Data de Julgamento: 05/12/2016).
Também é sabido que os tipos de atos de improbidade administrativa nos artigos 9º, 10, 10-A e 11 preveem, em suas respectivas penas estabelecidas nos incisos do art. 12, a pena de multa civil, obviamente com gradações diferentes. Surge aí um ponto específico: multa civil transmite-se aos herdeiros do agente ímprobo?
O STJ já decidiu que “consoante o art. 8º da Lei de Improbidade Administrativa, a multa civil é transmissível aos herdeiros, “até o limite do valor da herança”, somente quando houver violação aos arts. 9º e 10º da referida lei (dano ao patrimônio público ou enriquecimento ilícito), sendo inadmissível quando a condenação se restringir ao art. 11” (REsp 951389 SC, julgado em 09/06/2010). Essa decisão, que permite a transmissão da pena de multa civil para os herdeiros quando decorrer de ofensa aos arts. 9º e 10 é, ao meu ver, imprópria.
Multa não é ressarcimento de dano, é penalidade. Curioso é que, no mesmo julgado acima colacionado, o Ministro Relator Herman Benjamin asseverou que “a multa é uma sanção pecuniária autônoma e não tem o caráter indenizatório do ressarcimento, podendo ser infligida com ou sem ocorrência de prejuízo; (…) Conforme esclarecido anteriormente, a multa civil prevista na Lei de Improbidade é autônoma relativamente às demais sanções e independe da ocorrência de dano ao Erário ou de enriquecimento ilícito pelo agente ímprobo. Não decorre da obrigação de reparar prejuízo, o que leva à conclusão de que sua natureza é punitiva, e não indenizatória.”
Para justificar a transmissibilidade da pena de multa nos casos dos arts. 9º e 10 da LIA e impedi-la nos casos do art. 11, o Eminente Ministro considera que a multa é pena pessoal, “mas não é personalíssima”. Sustenta que o art. 1.997 do Código Civil dispõe que “a herança responde pelo pagamento das dívidas do falecido”, e que neste caso a multa seria uma dívida deixada pelo falecido. Como a transmissibilidade das penas só é possível, nos termos autorizados pelo art. 8º da LIA, em casos de enriquecimento ilícito ou danos ao erário público, no que a multa com base no art. 11 estaria excluída, entende o magistrado que é possível esta divisão.
Ouso divergir de tal entendimento, ciente de que o julgamento do REsp 951389 SC foi por unanimidade dos ministros da Primeira Seção do STJ. Não se trata de arrogância. É de interpretações divergentes que se chega ao aprimoramento de ideias.
Afinal de contas, a multa civil, prevista em todas as hipóteses de atos de improbidade administrativa, é pessoal ou personalíssima? Sem adentrar neste específico ponto, alguns doutrinadores possuem idêntico posicionamento ao meu. Para Wallace Paiva Martins Júnior[1] “a transmissibilidade das sanções derivadas da improbidade administrativa limita-se às hipóteses da perda dos bens ou valores ilicitamente acrescidos e ao ressarcimento integral do dano, excluindo-se as demais sanções cabíveis em face se seu caráter personalíssimo. A responsabilidade sucessiva, no entanto, encontra outro limite, que é o valor do patrimônio transferido com a sucessão mortis causa (até o limite do valor da herança).”
Para Eurico Ferrraresi[2] “diante do caráter sancionatório da multa civil, não ocorre sua transmissão aos sucessores do demandado na ação de improbidade administrativa.”
Mesmo após a decisão do STJ, acima colacionada, alguns Tribunais pátrios consideram que a multa civil, independentemente da natureza do ato de improbidade administrativa, não é transmissível aos herdeiros, por se tratar de punição de natureza personalíssima. Nesse sentido: TJMT, Apel. 00004205920158110046214142018 MT, julg. em 20/08/2018; TJSP 00002201320148260097 SP, julg. em 27/11/2017; TRF-5 , AC581767/PB, , julg. em 01/09/2015.
Curioso é que, em outra ação, o STJ afastou a aplicação de penas de multa civil, suspensão dos direitos políticos e proibição de contratar com o Poder Público por entender que se tratam de reprimendas com intuitu personae, que não poderiam ser suportadas pelos herdeiros do agente ímprobo que faleceu antes de sua condenação (AREsp Nº 1.215.401 – SP, julgado em 09/03/2018).
Enfim, a discussão não se encerrou. E não me parece que haverá de sê-lo tão em breve. Não fosse assim, os Tribunais e a doutrina não estariam “afrontando” o posicionamento do STJ. Eis a beleza do Direito.
[1] MARTINS JÚNIOR, Wallace Paiva. Improbidade administrativa. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 325.
[2] FERRARESI, Eurico, 1968- Improbidade administrativa : Lei 8.429/1992 comentada – Rio de Janeiro : Forense ; São Paulo : MÉTODO, 2011, pág. 70)