Praticamente em todos os concursos públicos surge a irresignação de candidatos em relação às questões das provas que apresentam mais de uma resposta correta ou nenhuma resposta correta. Tanto que os editais preveem a possibilidade de interposição de recurso ou revisão da prova. Mas isto na esfera administrativa. Se a banca examinadora decide por não acatar o recurso ou pedido de revisão apresentado pelo candidato, não resta a este alternativa a não ser se socorrer do Poder Judiciário. E muitas vezes a anulação de uma única questão representa uma brutal alteração na classificação final, que se traduz em admissão ou não para o serviço público. Mas, e se o Poder Judiciário se nega a analisar a correção das questões?
O professor Lenio Luiz Streck publicou um artigo sob o título “O direito fundamental de o concursando ter uma resposta correta – por que o concursando tem de ficar refém da burrice da banca?”[1]. Streck faz uma análise da revogada Súmula 400 do STF, que dizia que “decisão que deu razoável interpretação a lei, ainda que não seja a melhor, não autoriza recurso extraordinário pela letra a do art. 101, III, da Constituição Federal”, e da posição atual do STJ que entende que o Judiciário deve apenas “apreciar a legalidade do concurso, sendo-lhe vedado substituir-se à banca examinadora para apreciar os critérios utilizados para a elaboração e correção das provas, sob pena de indevida interferência no mérito do ato administrativo”. Para ele, esta posição seria uma espécie de repristinação da Súmula 400 do STF, que impede a avaliação da questões, no seu mérito, pelo Poder Judiciário. E nisto reside uma omissão jurisdicional, porque nega ao candidato o direito de receber uma avaliação correta e não conforme entendimento subjetivo (e muitas vezes equivocado) da banca examinadora. As suas palavras demonstram bem a contradição permitida pelos Tribunais: “Como dar poder discricionário à banca? Quer dizer que a banca tem o poder de, discricionariamente, colocar a resposta que quiser? E depois, com o mesmo poder discricionário (sic), negar recurso sob a alegação de que a banca é soberana? Só por isso já não seria uma ilegalidade?”
Compartilho desse entendimento. Imaginemos a seguinte hipótese: em uma das questões de um concurso público, existem duas respostas corretas (alternativas “A” e “B”), muito embora a banca examinadora considere correta apenas uma delas (alternativa “A”). Se o candidato assinalar a alternativa “B” e a banca examinadora considerar que tal resposta está errada, este candidato dificilmente conseguirá reverter tal correção perante o Poder Judiciário. Neste caso hipotético, a banca examinadora errou, não admitiu o seu erro e o Poder Judiciário não irá reverter tal erro, porque lhe é “vedado substituir-se à banca examinadora para apreciar os critérios utilizados para a elaboração e correção das provas, sob pena de indevida interferência no mérito do ato administrativo”, segundo entendimento do STJ que é acompanhado por diversos tribunais inferiores.
Contudo o mesmo STJ, que tem decidido que somente em caso de “flagrante ilegalidade” se permitiria anular uma questão de concurso, admitiu no AgRg-EDcl-Ag-RE 244.839 que “evidente erro material na formulação da questão impugnada possibilita a anulação pelo poder judiciário de questão objetiva maculada com vício de ilegalidade”. O problema é definir o que seja “evidente erro material”. Uma questão relativa a direito seria facilmente interpretada por um magistrado, ou seja, seria evidente para este. Já uma questão que envolva engenharia sanitária, por exemplo, não teria pelo juiz a mesma facilidade de interpretação, ou seja, não seria para este “evidente”, o que impediria a sua anulação.
Talvez por um disfarçado sentimento de (falsa) onisciência, os juízes negam-se a buscar suporte com experts, porque não querem admitir o seu desconhecimento sobre questões aplicadas nos concursos públicos (geralmente provas técnicas). Para não admitirem tal desconhecimento, enveredam pelo fácil (mas omisso) caminho da impossibilidade de análise quanto ao mérito dos atos administrativos.
O que se reclama é o poder que se dá às bancas avaliadoras de concursos. Da forma como enfrentado pelo Poder Judiciário, não interessa se a elaboração e correção das provas vão ser corretas ou não. Reserva-se à banca avaliadora do concurso o campo da avaliação das provas, com discricionariedade intocável, tornando-o um espaço sagrado, que nem ao Poder Judiciário é dado ingressar. E por conta desta posição dos tribunais, muitos concursandos deixam de receber a devida tutela jurisdicional.
A partir do momento em que o Poder Judiciário permite a intangibilidade das decisões das bancas avaliadoras, mesmos que as questões dos concursos sejam incorretamente elaboradas ou avaliadas, pode-se inclusive estar permitindo que um candidato menos preparado seja admitido no lugar de outro com mais conhecimentos. E quem não garante se isso possa ser feito para classificar melhor o protegido de algum dirigente do ente público que realiza o concurso? Isto seria uma ilegalidade, tal qual o Poder Judiciário se permite investigar. Mas, como já disse o STJ, somente uma “manifesta” ilegalidade é passível de anulação, e não uma “simples” ilegalidade. Assim fica difícil.
[1] STRECK, Lenio Luiz. O direito fundamental de o concursando ter uma resposta correta. https://www.conjur.com.br/2017-dez-28/senso-incomum-direito-fundamental-concursando-resposta-correta. Publicado em 28 de dezembro de 2017