Sabemos que na iniciativa privada é possível se acumular mais de um emprego – havendo compatibilidade de horários, não existe nenhum impedimento para que um trabalhador possua dois ou mais vínculos empregatícios.
Entretanto, na Administração Pública a regra é não ser possível a acumulação remunerada de cargos públicos, ou seja, não pode uma mesma pessoa exercer duas funções públicas remuneradas, em respeito ao disposto no art. 37, XVI da Constituição Federal. Logicamente que, como quase tudo em direito, existem exceções. Nesse caso, as exceções se encontram previstas especificamente nas alíneas “a”, “b” e “c” do mesmo inciso XVI do art. 37.
Assim, é possível a acumulação de: dois cargos de professor; de um cargo de professor com outro técnico ou científico ou de dois cargos ou empregos privativos de profissionais de saúde, com profissões regulamentadas. Tais situações são relativamente comuns.
É o caso do professor público de um município exercer outra função de professor público em município vizinho, ou trabalhar como professor público municipal e ao mesmo tempo (em jornada distinta) como professor público da rede estadual de ensino. É também o caso de um advogado público concursado realizar outra jornada pública de professor de uma universidade pública ou, como fazem muitos magistrados e membros do Ministério Público, os quais além de suas atividades também exercem outra atividade pública de professores de universidades públicas. Ainda é possível verificar o mesmo com profissionais da área da saúde, onde médicos trabalham na rede municipal de saúde e concomitantemente em hospitais públicos estaduais ou federais. Ou seja, tal possibilidade de acumulação de cargos públicos decorre da compatibilidade de horário, porque se tratam de profissões que possuem, via de regra, jornadas de trabalho reduzidas.
A Constituição Federal, ao permitir a acumulação de funções públicas especificadas, estabelece como único requisito a ser cumprido a “compatibilidade de horários”. Isto levaria a crer, em uma primeira análise, que seria permitido ao servidor público indicado nas alíneas do inciso XVI do art. 37 realizar duas jornadas diárias de oito horas, totalizando dezesseis horas diárias, ou 80 horas semanais, sendo-lhe permitido ainda realizar uma jornada na iniciativa privada de mais oito horas diárias, ou seja, tomar todo o seu dia – 24 horas – com trabalho. Mas isto seria humanamente impossível. Afinal de contas, o ser humano precisa de descanso, seja para o bem de sua própria saúde, seja para garantir a qualidade do seu trabalho. Não é à toa que a própria Constituição Federal, assim como a legislação trabalhista e a legislação administrativa estabelecem limites diários na jornada de trabalho, garantem o descanso semanal remunerado e o direito às férias anuais.
Tendo em vista o acima levantado, os Tribunais pátrios têm decidido que a compatibilidade de horários não se limita a impedir choque nos horários de trabalho, mas também impedir uma jornada diária excessiva, que irá comprometer sobremaneira a saúde do trabalhador e a qualidade dos serviços prestados. Neste sentido também a Advocacia Geral da União emitiu parecer (AGU 145/1998) pela ilegalidade do exercício cumulativo de cargos cuja soma das cargas horárias ultrapasse 60 horas semanais.
A 1ª Turma do TRF/1, contudo, já decidiu pela legalidade de acumulação de funções que ultrapassem este limite semanal, desde que demonstrada a compatibilidade de horários. Em Apelação Cível nº 0050248-67.2012.4.01.3400, julgada em 27.09.2016, entendeu que “as regras constitucionais e legais concernentes à cumulação de cargos não se referem à carga horária, mas tão somente à compatibilidade de horários. Não tendo a Constituição fixado limite de jornada semanal, é incabível fazê-lo por meio de ato administrativo.” Há que se considerar que, no caso específico apreciado, a carga horária semanal do agente público era de 62 horas. Já em outro julgado, a 6ª Turma do mesmo TRF/1 decidiu pelo limite de 60 horas semanais (AC 2006.34.00.014881-2 – julgado em 10.10.2016), sob o argumento de que “não obstante a ausência de força vinculante do Parecer da Advocacia Geral da União GQ-145/1998, ele não impede peremptoriamente a aferição da possibilidade de cumulação de cargos públicos, cuja carga horária ultrapasse 60 horas semanais, conforme entendimento proferido pelo Supremo Tribunal Federal, tendo em vista que aludida viabilidade deve ser analisada e fundamentada sempre nos princípios da razoabilidade e da eficiência e tendo em vista as peculiaridades em cada caso concreto”.
Por outro lado, a 2ª Turma do STJ, em posição que vem sendo adotada pelos tribunais inferiores, decidiu no AGInt-AG-REsp 1.073.783, publicado em 26.06.2017, que o Parecer AGU 145/1998, que limita a jornada semanal a 60 horas, não afronta o direito de acumulação de cargos públicos previsto no inciso XVI do art. 37 da Carta Magna, “isto porque a acumulação de cargos constitui exceção, devendo ser interpretada de forma restritiva, de forma a atender ao princípio constitucional da eficiência, na medida em que o profissional da área de saúde precisa estar em boas condições físicas e mentais para bem exercer as suas atribuições, o que certamente depende de adequado descanso no intervalo entre o final de uma jornada de trabalho e o início da outra, o que é impossível em condições de sobrecarga de trabalho. Desse modo, revela-se coerente o limite de 60 (sessenta) horas semanais, fato que certamente não decorre de coincidência, mas da preocupação em se otimizarem os serviços públicos, que dependem de adequado descanso dos servidores públicos. É limitação que atende ao princípio da eficiência sem esvaziar o conteúdo art. 37, XVI, da Constituição Federal”.
Ou seja, há dois posicionamentos distintos nos julgados, fazendo com que a insegurança jurídica acerca do tema seja bastante ampla. Recentemente fomos consultados acerca de uma situação onde uma professora exercia jornada de 30 horas semanais em uma escola pública municipal e 20 horas semanais em uma escola pública estadual, em jornada diurna. A Secretaria de Estado da Educação estava exigindo a redução de sua carga horária, sob o argumento de que não poderia haver mais de 50 horas semanais em período diurno.
Especificamente no caso de professores existe ainda outra peculiaridade, que é a questão de “horas-aula” (efetivamente ministradas) e as “horas-atividade” (que são utilizadas para preparação das aulas, correção de provas e trabalhos). Muitos estatutos de servidores públicos estabelecem que, para uma jornada semanal de 40 horas, 32 devam ser efetivamente de aulas dadas e 08 de horas-atividade; para uma jornada semanal de 30 horas, 24 horas devam ser efetivamente de aulas dadas e 06 de horas-atividade; para uma jornada de 20 horas, a relação é de 16 horas-aula e 04 de horas-atividade; para uma jornada de 10 horas, a relação é de 08 horas-aula e 02 horas-atividade. Os estatutos exigem que parte das horas-atividade deva ser cumprida no estabelecimento de ensino, e o restante pode ser cumprido em casa, por exemplo.
Contudo, esta limitação de 50 horas semanais em turno diurno não encontra amparo em nenhuma legislação. Demonstrado que a professora consegue conciliar suas jornadas de trabalho, que cumpre regularmente as horas-aula e as horas-atividade exigidas dentro do estabelecimento de ensino (exercendo o restante das horas-atividade em sua casa), e que não ultrapassa a 60 horas semanais, não há nenhum impedimento para exercer suas atividades em dois estabelecimentos de ensino público (municipal e estadual) no período diurno.
É preciso sempre observar, portanto, que apesar de a Constituição Federal prever parâmetros para o acúmulo de função legal, esses não são estáticos. Dessa forma, uma vez que o profissional consiga exercer suas atividades de forma plena e inexista prejuízos à Administração Pública, o limite de horas semanais deve atentar-se ao caso concreto a fim de que não prejudique o servidor responsável.